Escrever sem ver não é tão difícil quanto compor música sem escutar (converse mais a esse respeito com Beethoven). É que a arte de contar histórias é bem mais antiga do que a escrita. Bastava que uma pessoa contasse e outra ouvisse para que os casos passassem de geração a geração. A invenção do Braille levou a leitura e a escrita para quem não consegue enxergar, mas também é possível contar com uma ajudinha alheia para desfrutar a literatura. Foi assim que a maioria dos autores dessa lista criaram as obras que os consagraram – em outros casos, a deficiência de visão não foi tão forte a ponto de impedir que eles mesmos lessem (e escrevessem) seus trabalhos.
Homero

O autor grego dos poemas épicos Ilíada e Odisseia é muito controverso. Nem mesmo o século de seu nascimento é muito preciso. O século 8 a.C. é conhecido como a “data de Homero”, a época em que supostamente os poemas foram escritos. Isso significaria que Homero viveu 4 séculos após a Guerra de Troia, que ele narra com tantos detalhes na Ilíada. Confuso?
Se não sabemos sequer quando e onde nasceu (ou mesmo SE nasceu – existem teóricos que duvidam de sua existência), como saber se ele era cego? O que temos são teorias, mas mesmo assim ele não poderia faltar nessa lista. O nome Homero deriva de “homerus”, que significa “refém”, palavra muitas vezes usada como sinônimo para “cego” em grego. Ainda que existam documentos se referindo ao autor como “bardo cego”, pode ser que seu nome também significasse “aquele que guia os que não veem”, através da poesia. Esperamos a criação de uma máquina do tempo e/ou o Doctor Who para confirmar o que se diz sobre o escritor.

Camões

Nascido em 1524 em Portugal, Camões, um dos grandes poetas da Língua Portuguesa, perdeu um dos olhos em um campo de batalha na África. Felizmente, isso não impediu o escritor de escrever “Os Lusíadas”, epopeia nacionalista que conta a história do descobrimento da rota marítma para a Índia por Vasco da Gama. Publicada em 1572, a obra foi escrita durante algumas viagens do autor pelo Oriente – conta-se, inclusive, que Camões naufragou em uma jornada de volta a Goa e que os únicos sobreviventes do desastre foram o poeta e o manuscrito de sua obra-prima.
Ainda que não tivesse uma visão perfeita (a percepção da profundidade é mais prejudicada pela falta de um olho), Camões não deixou de viver loucamente: foi preso várias vezes, lutou em diversas batalhas ao redor do mundo, amou mulheres que o rejeitaram e, no fim, voltou a Portugal – mas não como heroi. Faleceu em 1580 com pouco dinheiro no bolso e sem o devido reconhecimento por sua obra.

John Milton

O poeta, nascido em 1608, ditou o épico “O Paraíso Perdido” da prisão, entre 1658 e 1664 e publicou-o em 1667. O autor foi preso por apoiar Oliver Cromwell durante o curto período republicano da Inglaterra e teria ficado cego enquanto cumpria sua pena, vítima de glaucoma.
“O Paraíso Perdido” conta a história da criação de Adão e Eva, a queda de Lúcifer e a sua expulsão do paraíso. A obra mistura paganismo, mitologia clássica e cristianismo no mesmo caldeirão. Em 1771, Milton publicou uma sequência do poema: “O Paraíso Recuperado”, que conta a história de Jesus. O poeta ficou consagrado por escrever em “versos brancos”, que possuem métrica, mas não rimam.

James Joyce

Nascido em 1881, o escritor irlandês é considerado um dos autores mais influentes do século XX. Entre seus trabalhos mais famosos estão “Dublinenses”, “Ulisses” e “Finnegans Wake”, sendo o último a sua obra mais experimental (e díficil de entender). Informalmente, Joyce também é conhecido como o maior escritor que todos fingem que já leram.
Joyce sofreu com vários problemas nos olhos e teve que se submeter a diversas cirurgias, sem conseguir jamais recuperar totalmente sua visão. Sylvia Beach, editora de algumas das obras do escritor, conta em seu livro “Shakespeare and Company” que as provas gráficas de Ulisses eram aumentadas diversas vezes para que o escritor pudesse revisá-las. Para escrever “Finnegan’s Wake”, Joyce contou com a ajuda de diversos assistentes que escreviam o que ele ditava. Um deles era o dramaturgo e novelista Samuel Beckett (mais conhecido pela peça “Esperando Godot”, em que nada acontece. Sério.).


Aldous Huxley

Autor de “Admirável Mundo Novo”, Huxley teve uma doença chamada queratite pontuada que o deixou praticamente cego em 1911, quando tinha 17 anos. A limitação da visão impediu o inglês de servir o exército durante a Primeira Guerra Mundial.
Alguns acreditam que essa quase completa cegueira que durou quase três anos foi o que salvou o autor dos horrores da guerra e possiblitou que ele se tornasse um professor na universidade de Oxford. Sua visão foi melhorando com o tempo – em 1940, ele precisava apenas de lentes de aumento para ler. Huxley publicou seu primeiro livro aos 20 anos e “Admirável Mundo Novo” aos 38, antes de se mudar para os Estados Unidos em 1937.


Jorge Luis Borges

Um dos grandes romancistas e ensaístas argentinos do século XX – talvez o maior deles – sofreu com uma cegueira hereditária progressiva que o deixou completamente cego em 1955 quando Borges tinha 56 anos. A falta de visão não impediu o autor de “Ficções” e “O Aleph” de continuar produzindo, inclusive ironizando sobre sua própria limitação.
Teimoso, Borges nunca aprendeu Braille. Assim que sua visão o tornou mais dependente, mudou-se para a casa da mãe, que atuou como sua assistente pessoal até morrer, aos 99 anos, em 1975. Depois da morte dela, Borges viajou muito pelo mundo na companhia da secretária com a qual casaria em 1986, no Paraguai, poucos meses antes de morrer de câncer no fígado.

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